Incêndios: é hora de quebrar a profecia

Meu avô sempre teve medo que o fogo chegasse àquela encosta. No verão, ao menor sinal de fumaça ou calor, ele passava horas guardando a montanha com seu olhar atento. Agora que o fogo lá chegou, quem aqui nasceu diz nunca ter visto nada parecido: um incêndio tão intenso, que chegou tão perto das casas, capaz de cercar esta pacata aldeia do concelho de Albergaria-a- Velha. Tenho certeza que meu avô diria o mesmo. Sempre houve incêndios, mas não assim.

Quando fui dormir, na noite de domingo para segunda-feira, o fogo que vinha de Oliveira de Azeméis parecia ter diminuído. Durante o dia era possível ver nuvens de fumaça, aviões e um pequeno brilho laranja, mas à noite parecia estar desligado. O IPMA explicou que os incêndios foram agravados condições climáticas extremase deve ter sido por isso que, quando acordei, às cinco da manhã, já se viam chamas do lado de fora da janela do meu quarto. Eles estavam na montanha, ainda longe. Não sabia que, horas depois, acabariam cercando a aldeia e se estendendo como uma corda crepitante pela encosta.

O fogo é astuto: pode parecer extinto, pode parecer pequeno, pode parecer que vai em outra direção. Mas em segundos ele vira e se transforma em um monstro. As cicatrizes do incêndio não fazem justiça ao tamanho que tinha na altura – nem ao medo que causou a quem o viu crescer. Uma van que pegou fogo a poucos metros da montanha faz imaginar o tamanho das chamas para alcançá-la em uma destruição arrebatadora. Mas não é preciso imaginar: há imagens que mostram isso e relatos das “horas horríveis” que marcam todas as conversas na aldeia.

Os moradores queixam-se da falta de água da rede pública e da falta de apoio no combate às chamas, prestado principalmente pela população. Valeu a água dos poços e tanques, valeu a pena os depósitos transportados em carrinhas abertas e as longas mangueiras que têm em casa para regar. As pessoas que passaram a noite sem paz valeram a pena. Nas casas mais próximas da montanha, onde o fogo chegou, alguns animais morreram nos currais e a lenha guardada para o inverno queimou.

Na cidade de Albergaria-a-Velha o desespero também era evidente. O incêndio cercou a cidade na segunda-feira e atingiu destruir moradias no centro. As faíscas caíam e pegavam fogo, e dava para ouvir crepitações no coração da cidade. O que estava queimando não estava claro. No cine-teatro Alba, onde as pessoas se refugiaram com o apoio da Proteção Civil – que distribuía sopas, fruta, água e sanduíches a quem precisava, bem como abrigo –, algumas crianças brincavam despreocupadas no palco enquanto chegavam pessoas que tinham foi apanhado pelo inesperado.

Houve idosos retirados de suas casas por prevenção, alguns contra sua vontade. Uma senhora mais velha me contou que se recusou a sair e que a levaram nas costas. E houve outros casos mais graves, como o de Bruno Pereira. Ele me contou que foi acordado por seu cachorro labrador, agitado, e que só então percebeu que a casa estava prestes a pegar fogo. Ele só teve tempo de escapar com a filha e o neto. Ao voltar para lá, encontrou os brinquedos do neto derretidos pelas chamas, as paredes queimadas, o celular quebrado, os azulejos caídos e um gato morto. Na noite seguinte, a incerteza sobre o que estava por vir o impediu de dormir. E, infelizmente, houve demasiadas histórias semelhantes noutras zonas do país afetadas pelos incêndios.

Estes cenários parecem fadados a repetir-se, e cada vez mais num futuro mais quente e incerto. António Guterres, secretário-geral da ONU, ele enfatizou que: “A crise climática é um fator multiplicador de todas as tragédias que assistimos”. Guterres usou metáforas contundentes para nos lembrar do impacto prejudicial que as alterações climáticas terão (e já estão a ter) nas nossas vidas – e, em muitos casos, nas populações mais vulneráveis ​​que nada contribuíram para o problema e pouco podem fazer para o resolver.

E não são apenas os incêndios. Secas, inundações (como os que atingiram a Europa Central e Oriental e causaram mais de 20 mortes), tempestades, ondas de calor, escassez de água, eventos cada vez mais frequentes, mais intensos e mais duradouros. São fenómenos que por vezes parecem antagónicos, mas que se agravam a partir de um mesmo denominador comum: as alterações climáticas.

No caso dos incêndios, existe um risco imediato para as populações – a ameaça às vidas, às casas que ardem, aos meios de subsistência consumidos pelas chamas –, mas também aos ecossistemas. E ainda há recordes em emissões de dióxido de carbono e consequências para a saúde daqueles que respiram esta nuvem de fumaça e cinzas.

Os suspeitos do costume estão mais do que identificados: as falhas na gestão florestal e no ordenamento do território, a falta de prevenção e fiscalização dos terrenos, as monoculturas (especialmente o eucalipto e as culturas invasoras), as mãos humanas, a crise climática que está a agravar estes cenários. Pode ser difícil ter um país sem incêndios, mas o risco deve ser minimizado.

Como é que num país constantemente atacado por incêndios não existem políticas públicas mais robustas para os prevenir? Como podemos continuar a agir como se fosse uma surpresa? São eventos cíclicos. Um incêndio é quase o prenúncio de uma tragédia anunciada: se ali ardeu, o mais provável é que volte a arder dentro de alguns anos, quando tiver acumulado combustível suficiente para alimentar novamente as chamas. É hora de quebrar a profecia.

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