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Sábado. Mais de 20 cidades veem as ruas serem tomadas por manifestantes. Pela quarta vez, em pouco mais de um ano, as pessoas decidiram protestar e exigir medidas para fornecer casas para todos. Dado o contexto de inflação e de aumento dos rendimentos, ter um lugar para viver tornou-se um desafio. E isso afeta todas as esferas, desde estudantes até trabalhadores.

A casa não é um espaço aleatório que você ocupa. Serve de intermediário entre nós e as cidades, o íntimo e o público, e tem como princípio esconder-se, existir invisível. Requer, para ser mais do que um edifício, ser “domesticado”, tornado próprio e apropriado. Uma casa provoca adaptações entre o eu e o mundo, existe como um dispositivo moral, onde podemos nos libertar dos disfarces sociais, portanto, serve sobretudo para nos devolver a nós mesmos.

Não ter onde morar ou como morar sacrifica a possibilidade de vivenciar “em casa”, cujo contexto econômico é moldado pelo que existe e pelo que não existe, pelo que se possui e pelo que falta. Uma casa, então, é também um dispositivo valioso para que todos reconheçam a sua própria perspectiva em relação à estrutura social. Sem um lar, além das óbvias proteções mínimas que eles trazem, perdemos parte da nossa disposição moral.

No dia seguinte. Domingo. As pessoas são chamadas a protestar contra a presença de imigrantes no país. Em reacção, outros são chamados a proteger a presença de estrangeiros. A manifestação proibitiva foi maior. Liderada pelo partido de extrema-direita, entre insultos e justificações distorcidas sobre a necessidade de proteger quem entra em Portugal, a cidade viu-se dividida sobre a forma como se entendia como espaço de abrigo.

Se a casa é a intermediária entre nós e a cidade, as cidades são casas mediadoras de aspectos sociais e culturais, onde o dispositivo moral propõe outra lógica, a convivência. Contudo, o capitalismo impede a coexistência, dada a sua necessidade de uso e apropriação de espaços, produzindo desigualdades, gentrificação, especulação imobiliária e privatizações. Quando o espaço urbano deixa de ser para todos e se torna um lar para poucos, elimina a capacidade de movimentos de oposição ao capital e à emancipação emergirem no ambiente público.

Portanto, da mesma forma que lutamos pelo direito à moradia, precisamos insistir em deixar as cidades serem lares coletivos. Não significa facilitar entradas ou abrir portas, mas compreender que a cidade é o primeiro abrigo para quem chega, mesmo num contexto social, político e moral. Quando abandonados, esses contextos perdem sentido e não precisam ser assimilados e respeitados. O interesse dos radicais é tomar as cidades para si, como quem fecha as portas e deixa de fora o intruso. Tratam as cidades como casas que querem domesticar aos seus usos, torná-las próprias e adequadas apenas aos seus interesses.

Nas cidades limitadas a valores restritivos, a cultura, também uma espécie de lar, atua de forma diferente como intermediária entre a subjetividade e a imaginação. Quando conduzida por grupos específicos, pode instituir formas e mecanismos opressivos, especialmente contra grupos tratados como marginais. A opressão é aplicada na forma de controle, proibição e violência contra qualquer pessoa que não pertença ao grupo dominante. E as coisas ficam ainda mais complicadas com a cultura digital redefinindo e fragmentando a identidade, permitindo maior disposição para que ideias alternativas interfiram nas subjetividades. Em outras palavras, na nossa capacidade de imaginar. A casa mais possuída de todas. Onde guardamos nossas expectativas, nossos desejos, nossos sentimentos, nossos medos.

Em dois dias, Portugal viu, agiu, participou, reagiu a um pouco disto. Enquanto, na prática, as casas são cobradas para habitar, outros recusam-se a aceitar a casa, e o movimento subterrâneo ocorre na infiltração da casa que protege a nossa imaginação. A política, se ainda estiver interessada em evitar o colapso, precisa agir e encontrar formas de facilitar o acesso à habitação, preparar a cidade e proteger a nossa subjetividade. O oposto será o caos social, o caos político e o caos cognitivo. Quando uma casa cai, o resto cederá. E não muito tempo.

Leituras sugeridas:

Filosofia da Casapor Emanuele Coccia. Imprensa Nacional, 2021.

Olhares Negros: Raça e Representaçãopor ganchos de sino. Editora Elefante, 2019.

A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura – Volume I: A Sociedade em Redepor Manuel Castells. Editor Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

O Novo Imperialismopor David Harvey. Edições Loyola, 2004.

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