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No século XVIII, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau escreveu o livro O nobre selvagemem que defende que os seres humanos nascem bons e a sociedade os corrompe — ideia que vem dos primeiros contactos entre europeus e povos indígenas norte-americanos. Em seu livro, Álvaro Filho, 51 anos, subverte essa ideia ao apresentar o selvagem bom como um indivíduo que se conforma com situações desfavoráveis, tenta se adaptar mesmo perdendo a identidade e o selvagem mau é aquele que se rebela.

“Na obra, seguimos uma trajetória bastante linear. O imigrante começa muito tímido, respeitando os outros. Depois, ele tem que agir como os outros, entrando na casa dos outros e, com o tempo, se permite confrontar, criticar e também participar da vida local”, explica Álvaro.

No seu segundo livro ambientado em Lisboa — o primeiro foi A loja muito letalcuja acção decorreu em Alfama, bairro onde vivia —, Álvaro optou pela estrutura de um romance policial. “Tenho muito respeito pelo gênero policial, que é muito maltratado. É o meu objeto de estudo no doutoramento que estou a realizar na Universidade Nova. A polícia não está apenas atirando, não está apenas cometendo crimes. Tem ali um enredo que pretende atrair a pessoa, atrair o leitor, mas por baixo conta uma história. Pode ser visto como uma ferramenta de leitura da sociedade”, destaca.

O romance, lançado pela editora luso-brasileira Urutau, possui praticamente todos os elementos de uma clássica história policial. Uma pessoa desaparecida, a investigação e até a loira fatal. Mas o final surpreende, pois não segue os caminhos tradicionais.

Líbia Florentino/divulgação

Ser um imigrante

O tema social que Álvaro aborda no livro é a condição do estrangeiro em terra alheia. “Viver como estrangeiro significa perder gradativamente a identidade original e diluir-se na identidade do país onde se encontra”, afirma. Ele dá um exemplo: “Já esqueci os nomes das ruas do Recife”, diz, contando que está em Lisboa há oito anos.

Ele considera que ser imigrante brasileiro em Portugal é mais difícil do que em outros países. “Pode ser uma fantasia da minha parte, mas se eu fosse um imigrante brasileiro na Espanha ou na Itália, seria menos incômodo lá do que em Portugal. Primeiro, devido ao tamanho da comunidade. Depois, porque a gente mistura um pouco mais que os outros. Na rua as pessoas não sabem quem é brasileiro e quem é português”, relata.

Álvaro procurou evitar no livro uma visão estereotipada dos brasileiros e portugueses. “Não existe apenas um tipo de brasileiro. Na verdade, tem um brasileiro aí que quer imitar a tentativa de oprimir os brasileiros. Não queria fazer algo maniqueísta, onde o brasileiro é bom e o português é ruim. Quem ler o livro perceberá que o próprio personagem principal tem maus hábitos e maus comportamentos. Acho que o livro foi escrito porque me sentia incomodado com esta situação e ajudou-me um pouco a fazer as pazes com Portugal.”

Gueto

O retrato que pinta dos brasileiros em Lisboa assemelha-se ao de uma comunidade que vive num gueto. Trabalham no mesmo local, moram juntos e moram no mesmo prédio, a República dos Anjos. Álvaro diz que é apenas a realidade. “A República dos Anjos é real. Conheço pessoas próximas a mim que moravam lá. Na verdade, o nome é República dos Anjos. Eu poderia ter colocado o endereço. Isso acontece com mais frequência do que esperamos”, pontua.

Jornalista de profissão, o autor recorreu à pesquisa de campo para colher informações. Exemplo disso foi a vida na livraria, um dos principais locais onde se passa a ação do romance. “Quando eu estava escrevendo, conheci os brasileiros que trabalhavam na livraria que ficava do outro lado da rua da minha casa. Uma vez por semana nos encontrávamos e eles me contavam como funcionava a livraria. Tudo o que acontece no livro é verdade. Mandei os capítulos para eles dizerem se era mesmo assim”, conta.

Mudança política

No meio do livro há uma mudança de humor. Toda a primeira parte é marcada pelo pessimismo, pela falta de perspectiva sobre a vida dos personagens, exilados de um país sem futuro. Na última parte emerge o otimismo, como se o livro ficasse mais leve.

Álvaro Filho e o livro O Mau Selvagem
Jair Rattner

“Escrevi o livro exatamente durante as eleições brasileiras. Não foi planejado. Mas acredito que foi o meu lado jornalístico da história. Não sabia como terminariam as eleições, mas o resultado influenciou o livro”, admite.

A mudança do comando político no Brasil mudou a história. “O livro ficou um pouco mais otimista do meio para o fim, mas há ressalvas. Ele acredita estar mais otimista, mas em relação ao Brasil. Em relação ao personagem principal, ele começa a mergulhar na loucura, na insanidade”, afirma.

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