Como lidar com um chefe tóxico (e não ser você mesmo)

Um fim de semana prolongado, graças ao feriado nacional de quinta-feira, obrigou-me a dois jantares com amigos, aos quais, a meio da refeição, fiz a mesma pergunta: como detectar um chefe tóxico?

Primeira noite, primeira mesa, cinco comensais, uns com ensino superior, outros sem, homens e mulheres. Pessoas que caminham quilômetros no chão de fábrica ou que passam o dia em frente a uma tela chegaram a um consenso:

  • tóxico é o chefe que fica com o seu crédito;
  • quem tem comportamento inconsistente (muda de fala, de atitude, dependendo de quem está na sala);
  • que é controlar (a palavra usada foi microgerenciadormas aproveito para mostrar como o inglês nem sempre diz a mesma coisa com menos letras).

Segunda noite, segunda mesa, cinco homens, com formações acadêmicas diferentes, mas que foram “homogeneizados” em uma escola de negócios, durante um MBA (desculpa, mas não tenho uma tradução para português que faça mais sentido) .

Uma mesa de gestores, portanto. Ou, pelo menos, dos teóricos da coisa. À mesma pergunta, eles reagiram de forma completamente diferente do primeiro grupo.

Eles começaram questionando a questão (“O que é um chefe tóxico?”), depois questionaram a relevância da questão para um Boletim de Notícias (“importa mais como é lido do que como é detectado”) e, após alguma resistência, deixaram seu conselho ao jornalista (obrigado, gostei muito deles) e contribuíram:

  • a relevância do enquadramento cultural (o que é tóxico num lugar pode ser visto de forma diferente noutro);
  • um chefe pode ser controlador sem perceber, porque, na sua cabeça, ele só quer ajudar;

A primeira conclusão é óbvia: não concordaremos sobre o que significa ser ou ter um chefe tóxico.

Se você perguntar a dez pessoas, obterá dez respostas diferentes, em uma cesta cheia de interpretações pessoais, baseadas em preconceitos como a heurística da disponibilidade, que é aquele atalho mental que nos leva a exemplos do passado que registramos. Se lembrarmos é porque será importante.

O ordenamento jurídico português não ajuda na definição, nota o especialista em Direito do Trabalho, o advogado José Luís Oliveira.

Pelo contrário, a literatura científica já menciona esse adjetivo aqui e ali em alguns estudos sobre traços de personalidade e liderança e gestão de pessoas.

No Código do Trabalho (CT) está escrito que a empresa tem a obrigação de “respeitar e tratar o trabalhador com civilidade e probidade, evitando quaisquer actos que possam afectar a dignidade do trabalhador, que sejam discriminatórios, prejudiciais, intimidantes, hostis ou humilhantes para o trabalhador”. trabalhador.” trabalhador, nomeadamente o assédio” (artigo 127.º).

Empresas e trabalhadores estão ligados por um contrato que se baseia na “subordinação jurídica do trabalhador”, continua Oliveira.

Este contrato consubstancia-se numa “relação de poder e, como tal, (é) propício a fenómenos que incluem assédio ou assédio moral. As situações agravam-se especialmente se nos depararmos com um chefe ou superior tóxico”, acrescenta.

Para combater esta situação, o CT prevê direitos, que incluem o direito de rescindir o contrato por justa causa. Ou a indemnização pelos danos materiais e imateriais sofridos, a pagar por quem os causou, e pelo empregador que não impediu esse comportamento quando poderia e deveria tê-lo feito.

Nestes casos, o tratamento do problema recomenda fazer um registro de todos os episódios, com descrição detalhada no espaço e no tempo; denunciar à Autoridade para as Condições do Trabalho (o assédio é uma infracção muito grave); solicitar ao tribunal ação judicial para “proteção da personalidade do trabalhador”; procure ajuda jurídica; e, se necessário, tirar licença médica.

O problema é que um chefe tóxico não é necessariamente considerado culpado de assédio. Esse conceito mais difuso pode ser relativizado até pela própria vítima. Basta admitir que ainda existem muitas profissões em que, e profissionais para os quais, é normal um telefonema no período de descanso, é compreensível a pressão para fazer horas extraordinárias face às “urgências” da empresa, e que não veem um chefe controlador como assediador.

Embora, numa decisão tomada há precisamente seis meseso Supremo Tribunal de Justiça (STJ) afirmou que “no assédio o ‘objetivo’ de afetar a vítima não precisa estar presente, este resultado é suficiente para ser o ‘efeito’ do comportamento adotado pelo assediador”.

Por outras palavras, um chefe controlador, que já assume que não sairemos do trabalho a horas, não é apenas tóxico – está mais próximo do assédio do que poderíamos supor.

É certo que em outra decisão anterior do STJpublicado há cerca de um ano e meio, outro relator decidiu que “(…) não saber lidar com a pressão inerente ao exercício das funções (…) não faz parte, em abstrato, do conceito de assédio moral”, previsto no artigo 29. do CT.

Contudo, alguns dias depois, em outra decisão do STJcom outro relator, decidiu-se que o assédio é um “processo contínuo mais ou menos longo que deve ser analisado como um todo e sem segmentá-lo nos momentos que o compõem”.

Este processo envolveu um gestor de topo (um CEO), que se queixou de várias coisas, incluindo não ter sido convidado para um almoço de empresa. O relator do STJ não teve dúvidas em considerar isso como parte do assédio.

De acordo com esta decisão mais recente, o assédio é “a conduta de um empregador que introduz alterações funcionais de que o trabalhador com funções de gestão só tem conhecimento por terceiros externos à empresa, mantém uma carga de trabalho excessiva, não o convida, sem qualquer justificação , em almoço de gestão, afirma, em reunião de gestão, com comprovada intenção de humilhar o trabalhador e afetar sua dignidade, que o trabalhador age de má-fé e tem grande ego, entre outros comportamentos”.

O problema é que um chefe tóxico pode ser tão ou mais pernicioso mesmo quando não chega a esses extremos – ou mesmo quando geralmente é educado e respeitoso. E Alice Pinto, 49 anos, gestora de projetos, provou desse veneno.

Vive e trabalha no estrangeiro há quase 13 anos, na Noruega (com uma curta passagem pela Roménia). Mas foi no início da carreira, ainda em Portugal, depois de sair de três anos de desemprego, que teve de lidar com um patrão que chama de tóxico.

“Ele era uma pessoa muito educada. Do ponto de vista científico, ele era muito bom no que fazia. Ele não era de gritar, nem de ser rude, nem nada parecido. Ele falava muito educadamente, mas então, até o ponto que importava… Talvez sejam os mais perigosos”, descreveu-me ao telefone.

No entanto, ela logo percebeu sinais preocupantes, tanto no relacionamento dele com ela quanto com outros colegas. Como tinha contrato por prazo determinado, ele aguentou. “Era para eu chegar às 9h em ponto e não ter horário de saída. Nunca recebi hora extra”, lembra.

Não lhe ocorreu denunciar o espírito controlador que exercia na sua esfera profissional, inclusive na sua agenda. “Não valia a pena falar. Porque ele não ia mudar de comportamento. Essa ideia de ser tóxico nem estava presente em nossas vidas. Só recentemente isso entrou no nosso léxico”, argumenta.

A insegurança no trabalho torna difícil lidar com um chefe assim. Por outro lado, já existe uma decisão muito recente do STJ, de abril de 2024, que não protege a denúncia de assédio no local de trabalho, alerta o advogado José Luís Oliveira.

Em suma, de acordo com esta decisão, os denunciantes de casos de assédio não gozam da protecção jurídica do Regime Geral de Protecção dos Denunciantes de Infracções (Denúncia), aprovado por Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro“o que poderia naturalmente inibir ou limitar a denúncia de casos de assédio laboral em Portugal”, destaca Oliveira.

Portanto, o denunciante pode estar exposto ao risco de retaliação e não ter proteção jurídica, por exemplo.

Para Alice, a gota d’água foi quando ela foi descontada do salário pelas horas que passava trabalhando em casa, para cuidar de um de seus dois filhos doentes.

Na Noruega, ele teve problemas com alguém que não era seu chefe direto. A cultura local evita o confronto. “Sabemos que eles discordam quando ficam calados”, descreve Alice.

A pessoa em questão questionou a qualidade do seu trabalho. Alice falou com seu superior. Ela foi ao departamento de recursos humanos e colocou a demissão na mesa quando essa pessoa subiu na hierarquia e se tornou chefe de seu chefe.

Algum tempo depois, recebeu uma mensagem em seu celular, com um pedido de desculpas. “Eu apenas disse obrigado.”

Sair da empresa é uma solução extrema e dramática. Alice tinha essa possibilidade. Nem todo mundo quer, nem todo mundo pode. Como lidar com isso?

Conversar é sempre a melhor solução. Caso isso não seja possível, peça ajuda aos colegas, recorra aos responsáveis ​​pela gestão de pessoas. Se existe um canal de denúncias na empresa, vá em frente. Se for uma situação considerada assédio, você pode procurar aconselhamento jurídico primeiro.

Nem todos concordamos sobre o que significa ter ou ser um chefe tóxico. Mas a maioria das pessoas será capaz de identificar o que é ruim para nós. E se faz mal, se envenena, é tóxico. Basta ler no dicionário.


Trabalho extra

Como fazer amigos no trabalho sem deixar de ser profissional

É possível que manter amizades no trabalho se torne mais difícil com o tempo. Equilibrar o crescimento profissional com a vida pessoal leva muitas vezes à diminuição da frequência e profundidade destas relações, preservando as ligações já estabelecidas. Mas não precisa ser assim, como exemplifica Jason Walker, neste artigo P3.

Um quarto das empresas portuguesas já utiliza mão de obra estrangeira

O número de estrangeiros a trabalhar por conta de outrem em Portugal ascendeu a 495 mil, um aumento de 35,5% face ao ano anterior e um número nove vezes superior ao do início da década. Este aumento reflectiu-se também na proporção de empresas que tiveram de utilizar mão-de-obra imigrante para satisfazer as suas necessidades. Você sabe se o seu município é aquele onde a proporção de estrangeiros no total de trabalhadores é maior? Confira neste artigo por Raquel Martins.

Sabe como será o seu IRS em 2024?

O Parlamento aprovou uma nova redução do IRS. A proposta do PS foi aprovada, a proposta dos partidos da AD foi rejeitada. Pedro Crisóstomo e Maria Lopes descreva neste texto o que aconteceu e mostrar como será o IRS este ano. Antes de votar, o podcast O Manual de Economia deu ainda mais contexto ao que estava em jogo. Vale a pena ouça aquisob a liderança do editor de Economia do PÚBLICO, Pedro Ferreira Esteves.

Fuente