Madeira: o espanto de quem vê uma relíquia queimar

Em meados de Setembro, o Funchal receberá o 66º Simpósio da Associação Internacional para Ciência da Vegetação. Serão cerca de 300 investigadores que voarão até à ilha da Madeira e descobrirão a sua riqueza ecológica. Mas a “jóia” da biodiversidade portuguesa, como diz o botânico Miguel Sequeira, com os seus ecossistemas únicos e espécies endémicas, revelar-se-á aos visitantes como palco de uma tragédia ambiental a descoberto, com o último capítulo evidente no solo ardido.

“É realmente uma coincidência inacreditável. Vem todo mundo, de todos os lugares. Canadenses, americanos, japoneses, chineses, coreanos, de vários países da África, da Europa, vem todo mundo, espanhóis, portugueses, italianos, gregos… Nós vamos para haver expedições à floresta estão programadas visitas a trilhos que estão a arder, vou ter de lhes mostrar a Madeira como é, ou como é, não como era”, afirma o botânico, que também é botânico. professor da Universidade da Madeira. Madeira, por telefone.

A conversa é cheia de consternação, de quem vive e estuda aqueles ecossistemas há décadas, e se depara com mais um desastre natural, que nada mais é do que uma repetição de desastres passados, sempre causados ​​por mãos humanas. Após os incêndios de 2010 e 2016, um novo incêndio florestal está a lavrar a ilha desde quarta-feira, 14 de agosto, e já consumiu cerca de 5000 hectares, segundo informações mais recente dos Serviços de Emergência do Programa Copernicus da União Europeia.

Felizmente, até ao momento não morreu nenhuma vida humana no incêndio, que continua activo nas zonas mais altas da ilha e pode descer até às encostas húmidas do famoso Floresta Laurissilva. Mas o trabalho iniciado pelos incêndios nos últimos anos, destruindo os habitats naturais e únicos que constituem os diferentes ecossistemas da Madeira, isso continua. “Aqui somos como médicos, estamos vendo nosso paciente morrer. Há ecossistemas inteiros que estão desaparecendo”, explica o botânico.

Ao conversar com cientistas que estudam a ilha da Madeira, você começa a entender o que está em jogo. Embora se tenha falado muito nos últimos dias sobre a floresta tropical Laurissilva na encosta norte da ilha, ela é apenas uma parte do riqueza natural da ilha.

Aquele pedaço de bioma tornou-se patrimônio natural mundial da UNESCO em 1999 – status que, este ano, completa um quarto de século –, pois representa a última mancha significativa de um ecossistema que existia há alguns milhões de anos na Europa continental ( mudanças climáticas que o planeta sofria naturalmente tentaram fazê-lo desaparecer). Na Madeira, aquela relíquia localiza-se na encosta norte entre os 300 e os 1300 metros de altitude.

Mas mais acima, há a urze serrana, onde as espécies de loureiro já não sobrevivem devido ao gelo invernal, e onde a humidade proveniente do nevoeiro é captada pela vegetação, que a transforma em água, disponibilizando-a à ilha. Depois, a altitudes próximas do nível do mar, surge uma floresta mais mediterrânica, agora apenas presente em pequenos fragmentos, cuja árvore dominante é o zambujeiro da Madeira, espécie de oliveira endémica daquela ilha. Existem também, nas encostas voltadas a sul, bolsas de floresta Laurissilva adaptadas a um clima mais seco, típico desta parte do território. Agora, todos esses diferentes ecossistemas têm espécies que não existem em nenhum outro lugar.

“A Laurissilva é apenas uma parte da importância da Madeira. Boa parte da ilha, 20 a 30% nunca foi coberta por uma floresta Laurissilva, esteve sempre coberta por outros ecossistemas. Porque são importantes os ecossistemas da ilha da Madeira? Porque têm um grau de endemicidade absolutamente extraordinário. É uma floresta de plantas únicas, com árvores que, em todo o mundo, só existem na Madeira”, explica o investigador, sem sequer se referir às espécies animais que completam a camada vegetal daquelas. biomas.

Fala-se de Madagáscar, mas “as espécies novas estão aqui, as espécies desconhecidas estão na nossa floresta. Só temos um parque nacional, que é a Peneda-Gerês. um parque natural”, destaca. “Tinha que ser um parque nacional. Portugal só tinha um, tinha que ter dois.”

Desde a chegada dos portugueses à Madeira, no início do século XV, os biomas naturais daquela ilha foram tomados pela exploração agrícola, que foi conquistando a ilha. Apenas as regiões mais altas e de mais difícil acesso permaneceram protegidas. Somente nos séculos XIX e XX é que a mata nativa começou a recuperar terras abandonadas, principalmente na encosta norte. Na encosta sul, a plantação de espécies exóticas, contra o perigo de inundações, que continua a ser um risco atual, tem reduzido o número de manchas de natureza autóctone.

Agora, assistimos ao terceiro ato desta história, com os incêndios provocados pela ação humana, involuntária ou não, com as alterações climáticas tornando as condições ambientais mais perigosas e favoráveis ​​aos incêndios, e com espécies exóticas colonizando cada metro quadrado devastado pelo fogo.

“Populações inteiras de espécies que a Madeira tem obrigação de preservar foram queimadas e perdidas”, afirma Miguel Sequeira, que é muito crítico em relação à forma como as autoridades responsáveis ​​estão a combater o incêndio. “Por um lado, temos uma perda de biodiversidade que é lamentável. É realmente uma catástrofe. Temos a possibilidade de uma redução do estatuto da Laurissilva, pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), o que seria uma vergonha e, ao mesmo tempo, um problema económico e temos um aumento do risco provocado pelo desaparecimento da cobertura vegetal em termos de aluviões”.

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