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Mesmo sendo a principal potência mundial, uma possível eleição de Donald Trump republicano nos Estados Unidos não deveria colocar em risco a democracia brasileira. Porém, para o Brasil, o melhor que pode acontecer é a vitória do Democrata Kamala Harris próximo novembro. É o que dizem os professores de ciências políticas Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Marcus André Melo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFP), que concederam entrevista ao PÚBLICO Brasil, em Lisboa, onde lançaram o livro Por que a democracia brasileira não pode ele morreu?.

Para Pereira, não se pode dizer que, neste momento, haja preponderância de ambos os lados do espectro político. “Em Inglaterra, por exemplo, o regresso do Partido Trabalhista ao poder mostra uma mudança para a esquerda. Portugal já apresentava avanços da direita radical nas eleições para o Parlamento português, em março. Mas, apenas três meses depois, o Chega (partido de extrema-direita de Portugal) falhou na corrida pelos assentos no Parlamento Europeu”, disse. Na sua avaliação, o bom desempenho de uma tendência ideológica não necessariamente se reproduzirá em outros países, como um efeito bola de neve.

O professor da FGV afirma que a eleição nos Estados Unidos não definirá a política internacional: “Os residentes dos Estados Unidos sempre terão um impacto gigantesco em outros países e gerarão consequências em todo o mundo. Mas o jogo é muito mais complexo. Existem especificidades regionais e nacionais”, afirma.

Melo (UFP) tem avaliação um pouco diferente. “Se Trump for eleito, isso terá impacto no Brasil, ao fortalecer o bolsonarismo. Isso se deve às ligações históricas entre a família Bolsonaro e Trump, até mesmo a nível pessoal”, pontua.

Os dois investigadores concordam em classificar o candidato republicano à Casa Branca como autocrático, mas não o suficiente para comprometer a democracia norte-americana. Ressaltam que os Estados Unidos são um país muito complexo, tem uma sociedade muito robusta e uma imprensa influente.

Outro fator importante é que, no Estado norte-americano, o setor público, incluindo a Presidência da República, não tem a mesma importância que se vê no Brasil. Os dois apontam a forte influência do Poder Executivo no Brasil na economia e na sociedade como um todo, tomando como exemplo a Petrobras, estatal que é a maior empresa do país.

Mudança radical

Segundo Melo, o chegada de Kamala Harris como candidato à presidência, substituindo Joe Biden, foi uma mudança radical no cenário político. “Ela perturbou completamente a campanha de Trump. Toda a estrutura trumpista estava centrada na narrativa de que Biden não estava apto para governar, devido à sua idade e porque estava comprometido com o estabelecimento. Ficou sem narrativa”, destaca.

Um dos principais sinais que viu foi a mudança nas intenções de voto a menos de 100 dias das eleições. “A vantagem que Kamala conquistou nos últimos dias é muito difícil de reverter. Falta pouco tempo para isso até as eleições”, diz Melo.

Ele considera que uma provável eleição de Kamala seria positiva para o Brasil. “Seria melhor porque o governo dela estaria mais alinhado com o morador Luiz Inácio Lula da Silva. A ascensão de Trump seria um golpe para Lula e para o Brasil. O atual governo apoia as posições brasileiras. O Brasil perderia muito com Trump como presidente”, prevê.

Livro

Sobre o livro que lançaram em Portugal em julho, os dois acreditam que o Brasil soube resistir às tendências autocráticas do governo Bolsonaro. “A democracia brasileira estava em risco, mas os perigos não eram resultado de uma ameaça forte o suficiente para se opor ao desenho institucional do Brasil. Além disso, houve capacidade de mobilização e resistência da sociedade brasileira”, diz Pereira.

Carlos Pereira e Marcus André Melo, no lançamento do livro Por que a democracia brasileira não morreu?, na Universidade de Lisboa
Jair Rattner

Segundo ele, a ideia era valorizar a resiliência e a qualidade das instituições brasileiras. Nesse sentido, contrasta com muitas análises catastrofistas, que consideram apenas as ameaças feitas pelos defensores de um modelo de sociedade autocrática.

Falando sobre as eleições municipais brasileiras, em outubro deste ano, Pereira está otimista. Ele não prevê novas ameaças à democracia, nem mesmo por parte daqueles que defendem uma interpretação da Bíblia acima da Constituição. “Não creio que haja a menor possibilidade de ameaça à democracia. Eu diria zero”, enfatiza.

Pereira e Melo afirmam que as eleições municipais estão mais relacionadas com questões locais do que nacionais. Na sua opinião, em geral, as eleições são definidas por critérios específicos de cada cidade, pelas dinâmicas locais, pelos problemas diários da população”. Pereira não acredita em grande influência da disputa entre PT e bolsonarismo nos resultados das eleições.

O professor da FGV indica que não há muita fidelidade dos eleitores aos partidos quando acontecem as eleições municipais. “Podemos lembrar que, nas últimas eleições municipais, o maior vencedor foi o PSDB. O partido conquistou o maior número de municípios do estado de São Paulo. Hoje o PSDB está morrendo de fome”, destaca.

Melo cita o exemplo de Pernambuco para mostrar a falta de ligação entre os resultados nacionais e municipais. “No estado onde Lula nasceu, e onde teve quase 67% dos votos nas eleições de 2022, o PT elegeu apenas um deputado federal, numa bancada de 25. Então, o PT não é uma força relevante no estado onde Lula é o representante máximo”, comenta.

Ele considera que a polarização é de natureza muito mais dinástica, uma disputa entre famílias que controlam os municípios há décadas. Tudo em função de estar ou não no governo, explica o professor da UFP. “Também em Pernambuco, o PSDB vive uma crise, apesar de ter eleito a governadora Raquel Lyra. Os tucanos perderam expressão no âmbito nacional. O que separa as forças políticas de lá é se são ou não aliadas do governador”, resume Melo.

Fiel da balança

O principal fator eleitoral nas eleições deste ano, segundo Pereira, serão os recursos federais que deputados e senadores enviam para seus redutos eleitorais: “As emendas parlamentares cresceram. Atualmente, representam R$ 50 bilhões (R$ 8,3 bilhões) por ano, um pouco abaixo do orçamento do Bolsa Família (R$ 69,7 bilhões ou 11,6 bilhões de euros)”, compara.

Estas alterações vão diretamente para os cofres dos municípios e os critérios de seleção são desconhecidos. “São movimentos eminentemente políticos, associados às influências dos parlamentares locais (deputados estaduais, vereadores, prefeitos), que orbitam em torno dos parlamentares. Essas transferências têm mais liberdade de aplicação do que recursos do orçamento municipal”, finaliza Pereira.

Texto atualizado após Joe Biden ser substituído por Kamala Haris como candidata presidencial democrata.

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