Texto alternativo

Os artigos elaborados pela equipe do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa utilizada no Brasil.

Acesso gratuito: baixe o aplicativo PÚBLICO Brasil em Android ou iOS.

A capa do álbum traz flores de algodão, que cobrem uma imagem quase desbotada dos músicos Maria João e André Mehmari. O nome do álbum foi escolha do cantor. “Algodão É um nome que mostra a leveza desse encontro entre nós dois, essa coisa branca e fofa que representa para mim a nossa relação. Gosto muito do André, para mim ele é um amigo e uma referência”, afirma Maria João.

Os dois começaram a trabalhar juntos no Brasil, há cerca de sete anos, com quatro mostra e um disco. Ele chama a cantora da mesma forma que seus amigos em Portugal: João. “Tudo começou com um projeto que ela fez para a gravadora SESCcom o trabalho de Aldir Blanc, no qual fui convidado a colaborar. Desde então, valorizamos este projeto que se tornou o Algodão. Mas conheço o trabalho do João como um grande fã e hoje tenho a alegria de tê-la como parceira”, afirma Mehmari.

Segundo Maria João, a proposta de gravarmos esse álbum juntos foi de Mehmari. “O álbum, para mim, é um privilégio e uma felicidade. Meu queixo sempre cai quando o vejo tocar todos os instrumentos e mais alguns, e surgiu a ideia do álbum. André teve a ideia. Ele fez a maior parte da música. Todo dia ele trazia uma música nova, nem dava para aprender direito”, lembra o cantor.

Mehmari conta como é jogar para Maria João. “Sempre fiquei muito impressionado e admirado com a capacidade do João de dar voz ao mundo. A voz dela é várias vozes. É a voz da pluralidade, da inclusão. São vários gritos nessa voz, que são muito humanos, necessários”, destaca.

Para Maria João, o que Mehmari traz e o que a impressiona é a sensação de liberdade. “O que me atraiu na música dele foi a aventura. Eu também sou muito aventureiro. Às vezes canto com outros músicos que não têm essa aventura e isso me causa uma angústia imensa. A mesma coisa acontece com André. Às vezes, ouço ele brincando com parceiros, vejo que ele está ali, agarrado à forma, agarrado ao acompanhamento para ajudar o outro”, enfatiza.

Maria João acrescenta que o músico lhe fez um dos maiores elogios que já recebeu na vida. “Ele disse: João, você é meu parceiro musical com quem sinto mais liberdade”, conta ela. Para ela, o que lhe permite ir mais longe no que canta é não ter medo de errar.

Capa do álbum Algodão, que tem 11 músicas
Divulgação

Música brasileira

O álbum Algodão Possui 11 músicas. Dois deles são do Guinga, ou, como Maria João o chama, Mestre Guinga, com quem já gravou o disco Mar Afora. “Um aluno tinha feito um programa de meia hora com músicas de um certo Guinga. Fui ouvir e fiquei absolutamente apaixonada. Aconteceu que um mês depois recebi um telefonema de alguém dizendo: Guinga gostaria de convidar você para cantar o repertório dele”, conta.

Questionada sobre o que a música brasileira significa para ela, Maria João diz que faz parte da sua formação. “Para mim a música brasileira é um amor e um lar. Desde sempre. Quando eu era mais nova tinha música brasileira que tocava nas rádios, tinha bossa nova e muitos artistas que vinham para Portugal”, lembra.

Ela conta que dois discos com cantores brasileiros foram fundamentais em sua formação. “Quando comecei a cantar, dois álbuns foram os mais importantes: Flora Purim ao vivo em Montreaux e Elis Regina ao vivo em Montreaux. Elis é a maior, uma coisa é essa artista. E Flora Purim, que não era bem jazz, mas também não era música brasileira”, diz ela.

Outro músico brasileiro com quem Maria João trabalhou foi Egberto Gismonti. “Eu adoro o Egberto. Ele é um espírito livre, mas muito complicado de lidar. Ele é difícil, teve problemas com produtores de todos os lugares, e eu apenas disse: “Estou feliz que não sou eu”, diz ele.

No entanto, Gismonti realmente a repreendeu. “No primeiro show ele ficou muito irritado comigo, porque eu trouxe toda a minha formação jazzística, improvisando a todo momento e fazendo comentários. No final, assim que saímos do palco, ele me ligou e disse: Vem cá, menina. Você não me deixa brincar, não me deixa explicar, eu tenho uma ideia e você já está por dentro. Odeio jazz”, diz.

Mas ela conseguiu lidar com Gismonti: “Ele é muito controlador. Só perguntei a ele, num determinado momento: ‘Egberto, em qualquer lugar, tenho que ficar sozinho, porque preciso soltar meus cavalos. Mesmo assim, foi ele quem decidiu quando eu faria os solos e quando eles terminariam.” Ela considera a turnê com Gismonti um privilégio. “Chorei muito no último show. Eu não queria que isso acabasse”, enfatiza.

Maria João também dividiu o palco com Gilberto Gil. “Ele é um cavalheiro maravilhoso”, derrete-se. Foram quatro shows, um em Lisboa, outro na Tunísia e dois na Bahia.

Ela diz que aprendeu com Gil. “Ele perguntou o que eu queria cantar e sugeri Beatriz, que considero um hino brasileiro. E eu perguntei: ‘Ei, Gil, devo fazer isso em português ou em português do Brasil? E ele me olhou chocado e disse: Mas querido, não é tudo a mesma língua”, lembra ela.

Cantora Maria João: “Faço música que adoro e que tem aventura”
Divulgação

Jazz ou não jazz

Quanto à mistura entre jazz e música brasileira, Maria João não aceita rótulos. “Não sei como definir isso. Deixo isso para quem sabe. Faço músicas que adoro e que têm aventura”, afirma.

Mehmari também recusa rótulos. “Não creio que este disco com o João seja um trabalho de jazz. Eu vejo isso como música contemporânea e moderna, que vem de muitas fontes. A palavra jazz é usada hoje para cobrir muitas lacunas. Acredito que, por conveniência, essa música se chama jazz, mas, na verdade, essa palavra serve para tantas coisas, que não significa muita coisa”, afirma.

Para ele, a marca da dupla é a capacidade de romper com o estabelecido. “Tanto João quanto eu somos improvisadores. O João tem uma capacidade tal que é capaz de criar um discurso musical completamente improvisado”, afirma.

Na opinião de Mehmari, o que Maria João consegue fazer com a sua voz torna o trabalho com ela especial. “Entendo o João como uma orquestra de vozes. Acredito que há um aspecto camaleônico na voz dela, o que é muito impressionante. Ela é capaz de dar voz a muitos eus líricos. Ela é capaz de ter um lirismo muito comovente, ao mesmo tempo que se torna como uma criança, com uma leveza de voz quase infantil, e tudo na mesma música. Ao mesmo tempo, ela tem ascendência de grandes cantores de jazz. Ela tem uma pluralidade de vozes que a coloca em um lugar único como cantora”, define.

Ecletismo

Mehmari, em suas obras, transita entre a música erudita, o jazz e a música popular brasileira. “Acho que essa mistura é um reflexo da minha própria história de vida, desde a minha infância, quando tinha toda essa informação musical acontecendo na sala através da minha mãe, que tocava no mesmo piano Chopin, Janis Jopin, Ernesto Nazareth e Elis Regina”, lembra.

André Mehmari que diz que a mistura de ritmos em sua obra é reflexo de sua própria história de vida
Divulgação

Aos 47 anos, pianista, arranjador, compositor e multi-instrumentista, Mehmari teve uma formação eclética. “Comecei muito jovem, com 7 ou 8 anos, estudando órgão. Ao mesmo tempo que estudava a música de Bill Evans, estudava o As invenções de duas vozes de Bach”, detalha.

Ou disco Algodão ajudou Mehmari a desenvolver um novo lado de seu trabalho, introduzindo sintetizadores em sua música. “Neste trabalho com o João, pelo gosto pela eletrônica, ela abriu espaço para eu explorar sonoridades que estavam aqui na minha produção, mas que aguardavam um trabalho em que pudessem desabrochar e desabrochar”, revela.

Fuente