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Os artigos elaborados pela equipe do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa utilizada no Brasil.

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Cena 1. Almoço em Lisboa, somos seis: dois portugueses e quatro brasileiros. Destes, um rapaz que nunca tinha estado em Portugal. A pergunta era inevitável: “Então, o que achas de Lisboa?”. A resposta foi surpreendente: “Queria ir para o Porto”. Quase engasguei. Trocamos olhares. “Para o Porto! Mas por que? Lisboa é muito mais bonita!” Agradeci-lhe que os meus amigos lusitanos também eram do Norte e talvez tenha havido um elogio disfarçado, mas a resposta aumentou o vazio: “Queria comer bacalhau do Porto, e tem que estar aí, né?”

Cena 2. Um dos meus amigos portugueses e eu ficamos chocados porque, no Brasil, chamamos o bacalhau que vem da Noruega de “bacalhau do Porto”. “Olha, vamos jantar depois daqui. Podemos ir a um restaurante brasileiro.” Não desgostei da ideia, mas fiquei pensando: “Talvez algo mais leve fosse melhor para esse momento, não acham? Um peixinho…” Meu amigo me olhou surpreso: “Mas, justamente, eu estava pensando em pedir uma moqueca”. Agora foi a minha vez de cair no abismo: “E desde quando moqueca é algo leve?”

Em São Paulo e em outras cidades brasileiras é comum que o bacalhau norueguês seja chamado de bacalhau do Porto. O nome carrega consigo a memória histórica da imigração. Recebemos sempre mais imigrantes no Brasil vindos do Norte de Portugal do que do Sul. E é por isso que também dizemos “rabanadas” e não temos ideia do que são “fatias douradas”. O português brasileiro é uma árvore que transplantamos do Norte de Portugal. O bacalhau é sempre para nós um alimento afetuoso e chamá-lo bacalhau do Porto é, de certa forma, um carinho por esse carinho, embora não seja verdade. Não é do Porto. Mas isso não importa.

A moqueca é, para a grande maioria dos brasileiros, um alimento pesado. Está na combinação de ingredientes, mas também na nossa cultura. A comida é uma síntese corajosa das muitas origens da nossa nação. Azeite de dendê, leite de coco e pimentão são típicos da moqueca baiana, mas o fato é que a moqueca é um ensopado com diversas versões pelo Brasil. Existem até versões vegetarianas. Sem falar na moqueca angolana. Certamente deve haver um que seja leve e possa ser consumido no jantar. Mas as emoções nos dizem não. É quase uma traição à força da história da moqueca pensar o contrário.

O fato é que a linguagem carrega consigo os traços de nossas experiências, visões e sentimentos. Falar é mais do que transmitir conteúdo; é construir-nos no mundo e revelar quem somos. Isso nos coloca na obrigação de aceitar o que a outra pessoa nos diz. A violência de uma resposta contundente ao que consideramos um erro na boca de um estrangeiro que não conhece a nossa verdade, disfarçada de “a” verdade, destrói. Na linguagem, as emoções são quase tão importantes quanto os fatos. Acredito que, às vezes, até mais.

Os burocratas da utopia de uma língua portuguesa que nunca existiu me assustam: única, inflexível, sem sentimentos. São rigorosos com o que não sabem e apenas destacam a própria ignorância. Gostam dos salões empoados e das imagens distantes da realidade. O português, enquanto língua, nunca foi assim, muito menos hoje em dia, pois é a alma de diferentes povos do mundo que se olham, sentados à mesma mesa, e percebem que as suas histórias se entrelaçam em saberes e afetos. Pessoas que, na cozinha da vida, onde tudo acontece, possam estar dispostas a inventar uma moqueca de bacalhau, seja portuense ou não.

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