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O jornalista João Borges, de 69 anos, passou a maior parte de sua vida profissional em redações brasileiras. Formado pela Universidade de Brasília (Un), passou por Estadão, O Globo, Aquilo éBand, Globonews, entre outros. Mas foi do outro lado do balcão, como assessor de imprensa do Banco Central, num momento extremamente importante para o Brasil, que ele reuniu a maior parte das informações que resultaram no livro Eles não são loucosque será lançado este sábado, em Lisboa.

Em posição privilegiada, Borges acompanhou as eleições vencidas por Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 e, sobretudo, toda a transição da gestão de Fernando Henrique Cardoso para o governo do primeiro trabalhador a chegar ao Palácio do Planalto. A maior parte dos fatos narrados pelo jornalista eram inéditos até a publicação da obra.

Este é o segundo livro de Borges. O primeiro, Anatomia de um desastreescrito em parceria com os jornalistas econômicos Cláudia Safatle e Ribamar Oliveira, expõe os fatos que levaram o Brasil a uma das mais graves crises da história recente, que culminou no impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Abaixo estão os principais trechos da entrevista de Borges ao PÚBLICO Brasil.

Este livro tem a forma de um ótimo relatório. Como foi fazer isso?
Foi uma longa jornada. Tive a ideia de escrever este livro quando estava passando por uma transição governamental. Para mim, era como se estivesse observando uma espécie de realidade submersa. Foi um momento muito especial na vida brasileira, porque claramente havia o governo Fernando Henrique que já estava desgastado, apesar de ser o presidente que tirou o Brasil da inflação, e todos os candidatos que, de alguma forma, eram oposição. Nenhum defendeu o governo. Mas o que percebi foi que havia muita coisa acontecendo abaixo do que as notícias captavam, tamanha a intensidade das coisas.

Este acaba sendo um testemunho dos bastidores.
Exatamente, eu vivi isso. E eu queria escrever o livro em 2003. Até conversei com Armínio Fraga, então presidente do Banco Central, e ele achou ótima a ideia, mas, de repente, ele disse: ‘João, os fatos estão muito vivos. Os nossos interlocutores acabaram de tomar o poder”. Quando eu fiz Anatomy of a Disasterem 2018, mencionei essa ideia ao editor. Ele disse: ‘Faça aqui uma proposta de dois ou três parágrafos’. Eu fiz e ele concordou.

Foram mais de 100 entrevistas?
Eles eram. Falei três vezes com Pedro Malan, ex-ministro das Finanças. Entrevistei o Armínio não sei quantas vezes, o José Dirceu, um líder importante do PT, duas ou três. E o livro cresceu. Há pessoas que nem sequer são mencionadas. À medida que aprendia mais, pensei que sabia muito, mas na verdade sabia pouco. E houve revelações surpreendentes. Não sei até que ponto tive sucesso, mas pretendia levar o leitor ao ambiente dos fatos. Foi isso que tentei fazer. Mas, como relato, procurei aprofundar ao máximo as informações e trazer, de alguma forma, o que senti naquele momento. Dei um tom confessional em algumas passagens, no sentido de que eu estava ali, vi, contei o que aconteceu.

A ideia, ao ler o livro, é que o Brasil é o país das crises. E isso?
É o país das crises. Algumas crises de países são inevitáveis, assim como são inevitáveis ​​nas nossas vidas pessoais, mas nós brincamos com as crises. Estamos cheios de crises que não precisam disso. E parece que o país, quando caminha para o abismo, se ajusta um pouco. Convivemos com a hiperinflação durante 20 anos e lembro-me muito bem que falar em programa de combate à inflação era visto como um sacrifício para o povo. Mas acontece que a inflação já era um sacrifício. Claro, é um processo de democracia brasileira. Foi saudável, mas precisava de tanta emoção? Eu poderia ter feito isso com mais sabedoria.

O centro do livro é a eleição de Lula em 2002. Historicamente, existem vários estudos que afirmam haver uma relação direta entre o clima e as mudanças políticas. Ouça a Pequena Idade do Gelo que provocou o fim da Idade Média, a erupção do vulcão na Islândia em 1783, cuja nuvem de fumaça reduziu a produção agrícola na Europa, o que desencadeou a Revolução Francesa. Você pode dizer que foi a seca de 2001, gerando o apagão energético, que levou à eleição de Lula?
Não tenha dúvidas. Esse é um ponto que passa um tanto despercebido, parece que o tempo apaga certas coisas que naquele momento são muito claras e importantes. Fernando Henrique venceu as eleições para um segundo mandato em outubro de 1998. Tomou posse em janeiro de 1999 e o real desvalorizou. Parece que isso seria uma grande crise. A sensação naquele momento, e eu vivi isso muito intensamente como jornalista, era como se o governo tivesse acabado. Rapidamente se percebeu que não era assim, tanto que houve uma mudança de presidente do Banco Central e de regime cambial, que foi muito turbulento, e o país recuperou rapidamente. Não houve recessão que todos temessem. O próprio Ferdinando Henrique temia. Depois, em 2000, o país recuperou o otimismo, cresceu, creio, 4,3% e a inflação caiu. O país ficou incrivelmente feliz. A projeção do mercado financeiro e dos economistas em geral era de que o Brasil cresceria mais de 4% em 2001 e 2002. Se um país acumulou em três anos um crescimento de praticamente 15%, seria lógico que o governo fizesse o seu sucessor. Aquela crise energética foi um golpe, porque foi preciso abortar o crescimento à força, para não deixar a inflação explodir. E causou um desgaste terrível para Fernando Henrique. Foi o gatilho para uma situação político eleitoral completamente diferente que colocou Lula e o PT no poder. Não estou dizendo que não chegaria lá, acho que a vocação do PT e do Lula era vencer uma eleição. Se não fosse esse, seria outro.

No livro, ele indica que vê a política em ciclos. Quais são os sinais de uma mudança de ciclo?
As mudanças políticas ocorrem devido ao esgotamento dos ciclos. E às vezes esse esgotamento não é captado pelos líderes. É um tipo de sentimento que está no coração das pessoas, mas não fica explícito. É por isso que, de repente, ocorrem mudanças abruptas. Lembremos das manifestações de junho de 2013. Até hoje não vi ninguém que pudesse dizer o que aconteceu. Não foi um aumento de 10, 20 centavos nas tarifas de ônibus ou metrô. O que penso é que, tanto no Brasil como no mundo, está surgindo uma espécie de mal-estar na sociedade. Não há líderes de referência.

Esse desconforto é provocado ou genuíno? Existe trabalho nesse sentido por parte de alguns líderes?
O que começa e o que causa o quê? O que me parece é que a sociedade melhorou os seus padrões de vida de forma muito clara após a Segunda Guerra Mundial, seja na Europa ou nos Estados Unidos. Este ciclo também já não provoca a subida que vinha tendo. Então esses ciclos terminam e não há clareza sobre o que vem a seguir. A sociedade está perdida. Ela fica com raiva, irritada com esse desconforto. A sociedade passou por momentos de grandes dificuldades, mas desde que tenha liderança e direção, parece que poderá suportar o sacrifício.

O livro fala de uma época em que existiam pactos políticos. E agora?
Esse ponto é muito importante, porque ali tínhamos um padrão de relacionamento incrível. Lula e os dirigentes petistas da época puniram muito Fernando Henrique durante a campanha. Mas não ao tomar decisões. Nisso, acho que meu livro surpreendeu muita gente. Nada acontece na história se não houver substrato, ou seja, a coisa já está presente de alguma forma na sociedade. Mas também não acontece se não houver líderes que estejam dispostos a fazer isso, que captem isso e levem às suas populações da melhor forma possível. Existem líderes negativos que fazem o oposto, mas líderes positivos que pensam em geral. A relação pessoal entre Lula e Fernando Henrique sempre foi boa. Na política, eles brigaram muito. Narro o encontro deles em dezembro de 1998. Beberam muito uísque e conversaram sobre tudo. Então, o papel dos líderes ali era muito importante. E por que somos tão piores nesse aspecto? Acredito que a marcha da história não é reta. Com as redes sociais, os diálogos políticos tornaram-se muito duros. A conversa começa de uma forma um tanto ofensiva. Naquele momento, acho que foi um período áureo das relações políticas no Brasil.

Você fala de uma época em que dentro do Congresso brasileiro era possível superar barreiras, havia a ideia de que era preciso ter estabilidade fiscal, prestação de contas. Hoje em dia, parece que o Congresso brasileiro gasta todo o seu tempo tramando contra isso. Por que?
Há muitas complicações para conversarmos. Fernando Henrique foi eleito pelo antigo PFL de direita. Ele foi duramente criticado pela esquerda, pois diziam que ele poderia vencer as eleições sozinho, mas não governar sozinho. Houve um quadro partidário em que Fernando Henrique governou com PSDB, PFL e MDB. Agora, para governar, de quantos você precisa? São partidos que não são fiéis, que não são realmente um partido. Isso é uma coisa muito complicada da política brasileira. Quando se perde o eixo da liderança, é o eixo do poder que se complica.

O livro é intitulado Eles não são louco. Se não forem, quem são os loucos?
Vou escrever outro livro chamado Who Are the Crazy Ones (risos). Esse título é muito interessante porque eu criei o livro e queria terminá-lo antes do ciclo Jair Bolsonaro. Porque, embora Bolsonaro não tenha nada a ver com o que escrevi, quando foi publicado durante o governo dele, o que trago, dependendo de como abordo, tem uma leitura diferente se o livro tivesse sido publicado cinco anos antes. Então, foi muito difícil encontrar esse título.

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