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Os artigos elaborados pela equipe do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa utilizada no Brasil.

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Carmem Miranda, em 1940, retornou ao Brasil, após uma bem-sucedida experiência nos Estados Unidos. Foi recebido com duras críticas por alguns que o consideraram “americanizado”. A resposta a esta crítica estava na música Disseram que voltei americanizado. Nele, nossa querida luso-brasileira resolve sua crise de identidade na caldeirada de camarão com chuchu. A América aparece, no entanto, com o significado muito usual de ser os Estados Unidos. Ser América ainda é uma dificuldade para nós, brasileiros.

Nos artigos que escrevo para este jornal utilizo frequentemente a expressão “português americano” para me referir ao português falado no Brasil e assim me oponho à expressão “português europeu”. Alguns – e com alguma razão – acham isso estranho. Na verdade, não é comum referir-se ao português brasileiro como americano. Mas por que? Faço isso deliberadamente e de uma forma um tanto provocativa.

Referir-se à variedade lusitana como português europeu hoje, quando tantos brasileiros vivem na Europa, também me parece anacrónico. Não percebe o fato de que o português brasileiro também é falado na Europa. Já percebeu que, em Portugal, cerca de 10% da população consome diariamente a variedade brasileira?

No entanto, falar português de Portugal parece redundante e soa estranho. Assim, se faz muito sentido referir-se a um português europeu porque Portugal está na Europa, também faz tanto ou mais sentido falar de um português americano, porque o Brasil faz parte da América. Ou não é?

Na escolha da expressão “português americano” há a crença de que ser americano é uma vocação brasileira para a qual poucos de nós — aqui e ali — ainda despertamos. Não posso deixar de compreender que a variedade brasileira é tão americana quanto a que é oficial em Portugal é europeia. É um facto linguístico, mas também cultural e, sim, político. Acima de tudo, é semear a esperança de que o Brasil se veja como americano, não por imitar Miami de forma desajeitada, mas por se compreender como parte deste vasto e rico continente em que se constitui como território, história e cultura.

Quando vou a Camboriú, em Santa Catarina, e me deparo com os muitos argentinos que vão para lá, seja para passar férias ou para morar, lembro que existe — e é falado até no Brasil — uma variedade americana do espanhol. Qualquer app de tradução me lembra que essa variedade (que não é uma, mas são várias!) existe. Da mesma forma, acredito que exista um português americano. Na verdade, latino-americanos, um português, um espanhol, um francês…

Para alguns de nós é muito difícil sentir que falamos português. Há muita gente no Brasil que diz, um tanto sem pensar, que teria sido muito mais vantajoso que a colonização do nosso território tivesse sido feita pelos ingleses. Esquecemos os muitos países que foram colónias britânicas e estão tão longe de serem terras desenvolvidas. Esquecemos também que a nossa identidade foi criada e é criada em português.

Deixamos cuidadosamente de lado o fato de que já fomos Portugal e esses luso-brasileiros que aqui ficaram depois da independência são uma das bases do que é hoje o Brasil. Há orgulho nisso? Não sei. Haveria muito o que discutir sobre o assunto. Mas é certo que há memória neste facto.

Falar português brasileiro significa entrar nesta realidade tão plural de partilha de uma cultura complexa construída em português e que é, ao mesmo tempo, africana, asiática e europeia e também, claro, americana. Mas falar esta variedade do português americano é também partilhar uma herança comum construída em muitos aspectos, nem sempre nobres ou éticos, é verdade, mas que reflectem uma forma de ser e de estar no mundo.

Nosso jeito, como falantes de português, de viver nessas terras onde os Andes, a Amazônia, o Pantanal, o Caribe, o Atlântico e o Pacífico se encontram. E eles nos moldam e nos ajudam a ser quem somos – ou quem podemos ser. E desta forma, trata-se também de trazer parte desta riqueza americana, no seu sentido mais profundo, para a língua portuguesa que se constrói e se reconstrói diariamente em todo o mundo e que se constrói também na América, que não é sinónimo de EUA.

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