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Há um século, Paul Hindemith compôs a ópera Santa Susanado libreto de August Witting. O espetáculo de quase 25 minutos escandalizou a sociedade ao representar o desejo sexual em conflito com a devoção espiritual num contexto de convento. A entrega da freira aos prazeres, a partir do encontro do seu corpo com a imagem de Cristo no altar, implicou uma forte crítica às instituições religiosas, ao fanatismo e à punitividade física em relação aos desvios morais, além da tentativa de materializar no corpo o êxtase de entrega espiritual. A estrutura musical foi composta seguindo a linguagem moderna da época, dissonante, cujas combinações provocam principalmente sensações de desconforto e tensão.

Recentemente, a ópera foi remontada por Florentina Holzinger sob o nome abreviado de Santo. Como sempre, seus espetáculos são: em formato radicalmente autoral, com duração de quase três horas, com cenas violentas, excessivas, provocativas e perturbadoras. A coreógrafa e performer austríaca, formada em Artes Aplicadas pela Universidade de Música e Artes Cénicas, investiga o corpo, especialmente o seu, como meio de agir e manifestar formas de violência social, religiosa e de género, com elevada presença sexual. E muita provocação e ironia. Tanto às estruturas sociais como aos limites da arte. Era previsível, portanto, que Holzinger encontrasse o trabalho de Hildemith em algum momento.

Depois de algumas apresentações, sempre com reações locais de conservadores e religiosos, algo mais aconteceu. Na Staatsoper Stuttgart, um dos mais renomados teatros europeus ligados ao experimentalismo, 18 pessoas relataram sentir-se mal. Pelo que sabemos, poucos necessitaram da presença de médicos. Enquanto a imprensa internacional se apressou em justificar a violência das cenas do espetáculo, envolvendo sexo real, sangue e outros elementos como causa.

Não é necessário ver a obra, apenas alguns dos excertos disponibilizados para divulgação pelas salas de concerto e festivais, para encontrar imediatamente outros possíveis argumentos, nomeadamente, a música alta, a iluminação estroboscópica, o contexto caótico. Como em qualquer parque de diversões, galeria de arte ou cinema, são elementos que podem causar náuseas, tonturas e até desencadear pânico, por isso recebemos avisos quando entramos. Não seria diferente no teatro.

Com tamanha exposição da violência nas múltiplas telas que nos acompanham diariamente, com exibições de corpos, contextos de guerra, as mais variadas formas de violência e brutalidade, não seriam apenas as cenas, pois o espectador interessado em Holzinger sabe exatamente o que você pode encontrar. E, se não exatamente, não espere nada menos do que ser surpreendido pela radicalidade da sua linguagem.

O mesmo acontece com outros artistas, como a diretora, dramaturga e performer Angélica Liddell, de quem sabemos que sempre receberemos discursos e cenas profundamente desafiadoras e perturbadoras. Elencar os artistas que confrontam a religiosidade e as religiões tornaria este texto quase infinito, como isso sempre aconteceu, em cada época com as características que acessam.

Recentemente, estúdios de 11 bits lançaram o jogo para diversas plataformas Indicar. Ambientado na Rússia do século XIX, mas com características medievais, a personagem central, a freira Indika, é confrontada pelas demais ao perceberem que ela ouve vozes, talvez do próprio Diabo. O jogo é profundamente melancólico e, ao contrário do que se espera de um jogo de ação, apresenta um ritmo lento e ações banais que exigem do jogador um mergulho mais profundo, menos divertido e mais reflexivo.

Também em Indicara sexualidade está em cena e a própria personagem, a certa altura, é obrigada a servir aos outros para alcançar seu destino, em profundo estado de humilhação e desafio às suas crenças. O jogo teve que ser concluído no Cazaquistão, depois que a estada dos criadores na Rússia se tornou perigosa e inviável, diz Dmitry Svetlow.

Alguns podem perguntar-se porque é que os artistas ficam tão fascinados em confrontar as instituições religiosas. Mas e se fizermos o exercício oposto? Intelectuais de correntes opostas e de diferentes disciplinas escrevem sobre a presença da crença e da religiosidade como um dogma a ser questionado, demonstrando a possibilidade de compreender a religião por outros caminhos. A crítica mais comum, e historicamente inquestionável, é que as religiões, especialmente as monoteístas, promoveram diversas formas de violência, guerras santas, colonização e formas de dominação e submissão.

Há quem convide à “ateologia”, em oposição à teologia, através da qual a desconstrução das bases do pensamento religioso pode ser complexificada e questionada, a fim de desconstruir os laços mentais que sustentam a religião na sociedade.

Michael Onfray explica como as religiões, tendo seus pilares nas fábulas, ajudaram no desenvolvimento de uma certa irracionalidade, pois limitar-nos ao dogma seria o mesmo que renunciar à razão, sem a qual nos tornamos escravos mentais incapazes de estabelecer outra perspectiva ética. A partir de reflexões como esta, outras se desdobraram: diante da impossibilidade de uma afirmação científica de Deus, na ausência de evidências empíricas, a crença é um estado delirante.

O argumento é que muitos dos aspectos tratados pela religião como divinos podem ser explicados com base em processos naturais; bem como a própria moralidade, possível de ser exercida pela racionalidade sem a presença de uma força ou instituição externa.

A biologia, a cultura e a psicologia são capazes de substituir muitos dos princípios determinados pelas crenças religiosas. O que, em última análise, torna o estudo da religião algo a ser comparado a outras instâncias, como o comportamento e a linguagem. E, de forma menos radical, os estudiosos sugerem o desenvolvimento de crenças como uma necessidade evolutiva para alcançar a coesão social, oferecer conforto psicológico, etc. Esses ainda seriam benefícios importantes, dos quais as instituições religiosas aproveitaram e utilizam de forma positiva e negativa.

É necessário, então, pensar como as instituições religiosas, aceitando a crença como fábula necessária ao desenvolvimento evolutivo, tornaram a crença, a fé e a espiritualidade objetos de descaracterização e deformação da moralidade racional e da ética dos corpos, das identidades, dos desejos.

Não surpreende, portanto, que os artistas continuem a confrontar violentamente as instituições religiosas e, consequentemente, os seus dogmas e crenças. Mas é especial notar o quanto a religião ainda é fundamento para que sejam discutidas e desconstruídas, ou seja, presentes e determinantes em suas próprias perturbações.

Afinal, você só luta contra aquilo que torna vivo em si mesmo. E negar e reagir é o primeiro gesto da arte. Mesmo que seja contra quem você é, contra quem você não quer ser, contra o que te atormenta. Compartilhando o tormento com o espectador, transformado na imagem de um corpo crucificado na sala de jantar observando você. Nada pode ser mais religioso do que isso.

Leituras sugeridas:

Florentina Holzinger: Um trabalho em andamento. Editora Dance em agosto de 2019.

Quebrando o feitiço: a religião como fenômeno naturalpor Daniel Dennett. Editora Objetiva, 2010.

Tratado de Ateologia: A Religião da Razãopor Michael Onfray. Editora Autêntica, 2007.

A desilusão de Deuspor Richard Dawkins. Casa das Letras, 2007.

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