Venha comigo ver os pássaros levantar voo em Alcochete

Moro no Porto e há um percurso que passa pela minha casa. Tal como na teoria do camião do lixo que já não interrompe o nosso sono porque o nosso cérebro o “regista” como de costume, confesso que não ouço a maioria dos aviões rasgando as minhas nuvens e o meu pedaço de céu (felizmente tenho o som de pássaros próximos que compensam qualquer ruído). Porém, um dia desses eu estava gravando uma mensagem de voz e contei os aviões. Em dez minutos (era quase um podcast, na verdade) eram cinco, se bem me lembro. É muito. A trilha sonora de fundo do barulhento bando de aviões continua além da meia-noite.

Sobre o barulho, jornalista Teresa Serafim já ouvi (e bem) os habitantes que serão vizinhos do futuro aeroporto. Mas, como sabemos (e sem ironia) podemos até falar com os pássaros, mas eles não respondem. Somente em fábulas e esta é a vida real. Há vizinhos sem voz em Alcochete. Sei que as espécies que habitam o precioso ecossistema da bacia do Tejo não estão felizes. Para ter mais certeza sobre isso e saber com mais precisão o porquê, devemos ouvir quem conhece a sua vida, quem a protege e a estuda. De novo e de novo.

É o que diz o jornalista Nicolau Ferreira fiz (e bem). O Governo admite que a nova avaliação ambiental agora exigida é um dos maiores desafios do projeto do novo aeroporto. E os especialistas que visitam regularmente as áreas protegidas do estuário do Tejo – como pesquisador José Alves que ouvimos – alertam que realmente precisamos reavaliar tudo novamente, à luz do novo conhecimento que temos do local e com o apoio de novas tecnologias que nos garantam maior precisão de análise. Não vamos repetir o O erro do Montijoavisa o investigador.

Todos sabemos que há 50 anos que discutimos o novo aeroporto e é também inevitável que este tenha impacto no ambiente envolvente, onde quer que seja construído. E foram incontáveis Notícias que escrevemos sobre o impacto ambiental das diversas opções na antiga mesa de discussão sobre o tema. O cortejo ainda não saiu do adro e o novo estudo de avaliação de impacte ambiental que se exige é uma peça chave deste projecto, como destacou à Azul o presidente da associação ambientalista Zero, Francisco Ferreira.

Na febre mediática entre nome do aeroporto, o custoo prazo de execução, as vozes a favor e contra a localização escolhido, ou o futuro da aviação e alternativas quando o planeta está em crise, esta parte importante do projeto foi sufocada. Há necessidade de renovação de uma Declaração de Impacto Ambiental expirada e obrigação de realizar novos estudos sobre como este empreendimento pode afetar a natureza e como podemos minimizar o seu impacto. Eles parecem problemas menores? Eles não são.

Uma das questões que estão no ar é obviamente o ruído que vai perturbar tudo e todos. Outro é o risco de colisão com os milhares de pássaros que ali vivem. Mas quem vê isso apenas como um risco para os pobres pássaros atropelados no ar estará enganado. O risco de colisões com pássaros também é um risco à segurança. Um dos problemas de Alcochete é que os cones de voo das duas pistas se sobrepõem aos corredores de movimentação das aves entre o estuário do Tejo e do Sado, alerta o investigador José Alves.

O livro tem quase 50 anos (quase tanto quanto a discussão sobre o novo aeroporto) mas o alerta é atual. Em Perigos de pássaros para aeronavespor Richard A. Dolbeer e Michael A. Collopy, os autores escrevem: “As colisões com pássaros representam uma ameaça significativa à segurança das aeronaves, causando milhões de dólares em danos e colocando passageiros e tripulantes em risco. Compreender os fatores que contribuem para as colisões com aves e implementar medidas proativas para reduzir a probabilidade de colisões com aves são essenciais para garantir operações aéreas seguras.”

O dinheiro muitas vezes fala mais alto, eu sei. As perdas de milhões prejudicam os nossos bolsos e os riscos de segurança assustam qualquer um. Mas e o contrário? Há o impacto da vida selvagem no tráfego aéreo, mas há também (e sobretudo, na minha opinião) o impacto do aeroporto na vida selvagem. Isso não dói em lugar nenhum? Os danos à vida na bacia do Tejo poderão ser enormes.

E por falar nisso, colocando a carroça na frente dos bois, se o campo de tiro se tornar mudar-se para Mértolacomo já foi dito, aposto que também vai perturbar muita vida daquele lugar mais distante. O impacto ambiental irá estender-se muito para além do local onde serão criadas duas pistas para receber o bando de aviões anunciado para Alcochete.

Se e quando o projecto estiver concluído e quiser seguir os conselhos da música, saiba que em Alcochete não verá apenas aviões. Você verá muita vida também, muitos pássaros e outras espécies. Espero que sim. Esperemos que a vida selvagem de lá não faça as malas e fuja. Você terá algum lugar para ir?

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