A Semente do Figo Sagrado

Quanto podemos esperar que o cinema seja totalmente legível? Se a história, a cultura e a própria existência não são tão facilmente analisadas, por que deveriam ser os filmes que fazemos sobre elas? Será que navegar nesta vida caótica não é definido pelas ondas maravilhosas e cansativas do mundo que se abatem sobre nós?

Se alguma vez existisse um filme que captasse isto, seria o fascinante, embora disperso, “Grand Tour” do realizador Miguel Gomes. Seu mais recente é um trabalho expansivo e abrangente que distorce o tempo, o espaço, o gênero e a forma. É uma experiência totalmente intransigente que dança com alegria e melancolia. Provando ser evocativo em um momento e implacavelmente exaustivo no seguinte, é tão lindo de ver visualmente quanto difícil de abraçar completamente tematicamente. E, no entanto, se você se entregar a isso no final, como diz um personagem, poderá vislumbrar algo espetacularmente sublime na vasta jornada que ele percorre.

Estreando em competição no Festival de Cinema de Cannes de 2024a história de Gomes e dos co-roteiristas Mariana Ricardo, Telmo Churro e Maureen Fazendeiro quase se torna incidental. Embora Gomes tenha dirigido grande parte do filme remotamente enquanto ele foi rodado durante o auge da pandemia de COVID, este não é uma reflexão cuidadosa sobre essa crise específica tanto quanto é uma exploração frequentemente impenetrável de tempo, lugar e duas pessoas que também não importam particularmente.

O primeiro é Edward (Gonçalo Waddington) que deixou para trás o segundo, a sua noiva de longa data Molly (Crista Alfaiate), para partir pelo mundo. O bufão diplomata britânico parece movido pela necessidade de nunca parar de se mover, apesar dos muitos telégrafos que sua noiva continua lhe enviando instando-o a fazê-lo. Ele viajará para Cingapura, Bangkok, Saigon, Manila, Osaka, Xangai e muito mais, com narração sobre tudo isso até que você comece a pensar que leu tudo. Então, uma bola curva no ponto médio muda o jogo, embora a mudança também permaneça em grande parte sem importância, pois funciona como uma nota assustadora da futilidade da vida.

O filme trata de tudo isso em um sentido amplo, mas uma descrição tão estritamente linear da progressão é totalmente insuficiente para capturar completamente as muitas coisas que Gomes busca aqui. Tudo parece gigantesco em um sentido bastante complicado, como se esses dois personagens fossem apenas meros peões em um jogo que nenhum dos dois entende totalmente. A mudança do preto e branco para o colorido, bem como de filmagens mais modernas para as recriações do filme do início de 1900, serve bem para isso, incorporando o quanto está acontecendo ao mesmo tempo, o tempo todo. Embora hesitemos em chamar isso de sátira, essa abordagem parece distorcer levemente a história romântica superficial no centro do filme e a longa história do cinema que usa vários países como nada mais do que pano de fundo. Apesar do filme apontar para um reencontro da dupla, nada acaba sendo tão simples.

O que une tênuemente os dois personagens são os telegramas e os lugares para onde cada um vai, embora as experiências que eles têm ao fazê-lo não poderiam ser mais diferentes. Edward parece quase perpetuamente sombrio, enquanto Molly abraça a bobagem, dando a risada mais única que você já viu em um filme. Há tanto absurdo anárquico na vida e no filme que tal risada parece ser a resposta certa.

Porém, assim como um personagem foge e outro corre em sua direção, o filme fica mais forte quando passamos para a segunda metade com Molly. A justaposição de sua experiência com a de Edward faz tudo parecer mais contundente e poético. Ainda há muito que permanece abstrato, pois Gomes continua desinteressado em tornar algo particularmente explícito, mas isso é tudo intencional. Apesar do nosso desejo de dar sentido ao que pode ser uma existência impenetrável, a marcha do tempo pouco se importa com o que queremos das nossas vidas. Da mesma forma, há uma boa chance de que muitos desejem mais para manter este filme unido, já que muitas coisas permanecem frustrantemente espalhadas na parte do filme de Edward, mas ainda assim se transforma em um final absoluto.

No meio do filme, quando Molly vai fazer com que um médium leia seu futuro, ela fica irritada com o que lhe é dito. Só mais tarde percebemos que este pode ser um dos poucos momentos de clareza que ela realmente consegue em sua vida. É uma conclusão audaciosa num filme que, embora nunca falte ousadia, beneficia muito deste floreio final. O fato de permanecer sedutor, tanto para os personagens quanto para o público, parece estar presente na experiência. Podemos passar a vida inteira buscando algo, apenas para descobrir que está sempre fora de alcance. Mesmo se você olhar para o céu e ver o quadro geral, pode ser tarde demais.

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